sábado, 31 de outubro de 2009

PÁSSARO ENCANTADO


Era uma vez uma menina que tinha como seu melhor amigo, um Pássaro Encantado. Ele era encantado por duas razões. Primeiro porque ele não vivia em gaiolas. Vivia solto. Vinha quando queria. Vinha porque amava. Segundo, porque sempre que voltava suas penas tinham cores diferentes, as cores dos lugares por onde tinha voado. Certa vez voltou com penas imaculadamente brancas, e ele contou estórias de montanhas cobertas de neve. Outra vez suas penas estavam vermelhas, e ele contou estórias de desertos incendiados pelo sol. Era grande a felicidade quando estavam juntos. Mas sempre chegava o momento quando o pássaro dizia: "Tenho de partir." A menina chorava e implorava: "Por favor não vá fico tão triste. Terei saudades e vou chorar..."

"Eu também terei saudades", dizia o pássaro. "Eu também vou chorar. Mas vou lhe contar um segredo: eu só sou encantado por causa da saudade que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for não haverá saudade. E eu deixarei de ser o Pássaro Encantado e você deixará de me amar."

E partia. A menina sozinha, chorava. E foi numa noite de saudade que ela teve a idéia: "Se o Pássaro não puder partir, ele ficará. Se ele ficar, seremos felizes para sempre. E para ele não partir basta que eu o prenda numa gaiola."

Assim aconteceu. A menina comprou uma gaiola de prata, a mais linda.

Quando o pássaro voltou eles se abraçaram, ele contou estórias e adormeceu. A menina, aproveitando-se do seu sono, o engaiolou. Quando o pássaro acordou ele deu um grito de dor.

"Ah! Menina...que é isso que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias. Sem a saudade o amor irá embora..."

A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por acostumar.

Mas não foi isso que aconteceu. Caíram suas plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio: deixou de cantar. Também a menina se entristeceu.

Não era aquele o pássaro que ela amava. E de noite chorava pensando naquilo que havia feito com seu amigo...

Até que não mais agüentou. Abriu a porta da gaiola. "Pode ir, Pássaro", ela disse." Volte quando você quiser..."

"Obrigado, menina", disse o Pássaro. "Irei e voltarei quando ficar encantado de novo. E você sabe: ficarei encantado de novo, quando a saudade voltar dentro de mim e dentro de você!


Rubem Alves

Poema

Procuro despir-me do que aprendi.
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar minhas emoções verdadeiras.
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
mas um animal humano que a natureza produziu.
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
isso exige um estudo profundo,
uma aprendizagem de desaprender...

Alberto Caeiro

BAGUNÇA


Você me pergunta sobre o que fazer para curar-se de uma terrível doença chamada bagunça. A bagunça cria situações terríveis: livros perdidos, objetos desaparecidos, cartas não respondidas, aniversários e casamentos esquecidos, contas não pagas. Quando a bagunça só machuca a gente, o sofrimento é suportável. É só a gente que sofre as consequências. Mas quando tem a ver com compromissos não atendidos, paira sempre a certeza, na cabeça de quem foi vítima, de que foi falta de atenção, grosseria. Eu poderia lhe indicar uma lista de livros com conselhos práticos do tipo " cada coisa em seu lugar, um lugar para cada coisa"; anote tudo numa agenda, etc. Mas eu lhe asseguro: esses conselhos são inúteis. Acho mesmo que bagunça é doença incurável.

Minha mãe fracassou como educadora. Ou eu fracassei como aprendiz. Enquanto eu morava na casa dela, ela lutou. Argumentou. Ficou brava. Inutilmente. Vez por outra eu me enchia de vergonha e de boas intenções e dizia: "Vou por tudo em ordem". As boas intenções duravam por poucos dias. Logo eu me via de novo afogado – isso mesmo, afogado; o bagunçado vive afogado por sua própria bagunça - esforçando-me por me manter à tona da confusão das minhas coisas.

Recebi, faz tempo, um presente de uma mulher que desconheço. Veio embrulhado em papel bonito. Abri. Era um quadrinho bordado a ponto de cruz. Está pendurado à minha frente: "Deus abençoe esta bagunça". Ela nunca havia entrado no meu escritório – mas é claro que ela suspeitava...

Bagunça de idéias não é coisa má. O inconsciente é uma bagunça infernal, idéias e imagens dançando o tempo todo numa orgia de desordem incontrolável. É dessa bagunça que nasce a literatura. Quem lê nem imagina! Vê as idéias organizadas, bonitinhas, uma atrás da outra. Não tem a mínima idéia do caos de onde nasceram. Para meu consolo Nietzsche dizia que o segredo da criatividade é ser rico em contradições. Os textos sagrados dizem que no princípio era o caos; foi do caos que nasceu a beleza. Com Deus, tudo bem, porque ele não se esquece de nada. Mas o problema é com a gente. Esquecemos – e com o esquecimento ferimos sem querer pessoas que amamos.

A psicanálise tem a mania de explicar todo esquecimento como ato de uma vontade inconsciente. A gente esquece porque, no fundo, "quis" esquecer. Quando o paciente se esquece da sessão de análise ou se esquece do que ia dizer, o psicanalista diz logo: "Aha! Se você esqueceu e porque queria esquecer!" Discordo. Nem tudo pode ser explicado psicanaliticamente. Como se sabe Freud era um fumador inveterado de charutos. Sandor Ferenczi, seu discípulo e colega, ficava incomodado com o hábito fedorento do mestre, e se punha a fazer interpretações psicanalíticas orais-fálicas do charuto, ao que Freud respondia: "Sandor, por vezes um charuto é só um charuto..."

Por vezes o esquecimento não esconde nem desatenção e nem grosseria: é apenas um resultado dessa doença que se chama bagunça.


Rubem Alves

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