sábado, 31 de outubro de 2009

BAGUNÇA


Você me pergunta sobre o que fazer para curar-se de uma terrível doença chamada bagunça. A bagunça cria situações terríveis: livros perdidos, objetos desaparecidos, cartas não respondidas, aniversários e casamentos esquecidos, contas não pagas. Quando a bagunça só machuca a gente, o sofrimento é suportável. É só a gente que sofre as consequências. Mas quando tem a ver com compromissos não atendidos, paira sempre a certeza, na cabeça de quem foi vítima, de que foi falta de atenção, grosseria. Eu poderia lhe indicar uma lista de livros com conselhos práticos do tipo " cada coisa em seu lugar, um lugar para cada coisa"; anote tudo numa agenda, etc. Mas eu lhe asseguro: esses conselhos são inúteis. Acho mesmo que bagunça é doença incurável.

Minha mãe fracassou como educadora. Ou eu fracassei como aprendiz. Enquanto eu morava na casa dela, ela lutou. Argumentou. Ficou brava. Inutilmente. Vez por outra eu me enchia de vergonha e de boas intenções e dizia: "Vou por tudo em ordem". As boas intenções duravam por poucos dias. Logo eu me via de novo afogado – isso mesmo, afogado; o bagunçado vive afogado por sua própria bagunça - esforçando-me por me manter à tona da confusão das minhas coisas.

Recebi, faz tempo, um presente de uma mulher que desconheço. Veio embrulhado em papel bonito. Abri. Era um quadrinho bordado a ponto de cruz. Está pendurado à minha frente: "Deus abençoe esta bagunça". Ela nunca havia entrado no meu escritório – mas é claro que ela suspeitava...

Bagunça de idéias não é coisa má. O inconsciente é uma bagunça infernal, idéias e imagens dançando o tempo todo numa orgia de desordem incontrolável. É dessa bagunça que nasce a literatura. Quem lê nem imagina! Vê as idéias organizadas, bonitinhas, uma atrás da outra. Não tem a mínima idéia do caos de onde nasceram. Para meu consolo Nietzsche dizia que o segredo da criatividade é ser rico em contradições. Os textos sagrados dizem que no princípio era o caos; foi do caos que nasceu a beleza. Com Deus, tudo bem, porque ele não se esquece de nada. Mas o problema é com a gente. Esquecemos – e com o esquecimento ferimos sem querer pessoas que amamos.

A psicanálise tem a mania de explicar todo esquecimento como ato de uma vontade inconsciente. A gente esquece porque, no fundo, "quis" esquecer. Quando o paciente se esquece da sessão de análise ou se esquece do que ia dizer, o psicanalista diz logo: "Aha! Se você esqueceu e porque queria esquecer!" Discordo. Nem tudo pode ser explicado psicanaliticamente. Como se sabe Freud era um fumador inveterado de charutos. Sandor Ferenczi, seu discípulo e colega, ficava incomodado com o hábito fedorento do mestre, e se punha a fazer interpretações psicanalíticas orais-fálicas do charuto, ao que Freud respondia: "Sandor, por vezes um charuto é só um charuto..."

Por vezes o esquecimento não esconde nem desatenção e nem grosseria: é apenas um resultado dessa doença que se chama bagunça.


Rubem Alves

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